“Hamut. Que esse nome iria ser famoso, eu sempre
soube. Mas nunca imaginei que pelos piores motivos,” dizia a voz.
E disse muitas coisas, durante tempos e tempos,
incessantemente, e conquistou a mente do pequeno Yipion, o menino da Corte, que
nem falar sabia.
Como que uma compensação divina pela aparente
estupidez do rapaz, possuía uma ávida inteligência, perspicácia e parecia
sempre saber o que fazer, mesmo só tendo ainda três anos de idade.
E ele cresceu assim, mudo. E os pais educaram-no,
como qualquer rei faz a um filho, porém sempre com algum receio do que o futuro
lhe reservaria.
Yipion tinha dezassete anos, e ingressou no
exército. Receoso pelo pequeno e aparentemente indefeso rapaz, o pai não o
deixou, tentando prendê-lo em casa. Yipion esgueirou-se do palácio, e nunca mais
foi visto.
Anos passaram-se e a guerra contra o inimigo
continuava em plena força, Yipion nunca tendo sido visto. Até que um dia,
durante uma batalha acesa entre os Reinos das Montanhas e o inimigo, um
cavaleiro montado num corcel preto, vestido com uma longa túnica preta com
finos detalhes a vermelho, adentrou o campo de batalha a toda a velocidade. A
cabeça rapada, e a pele repleta de marcas e cicatrizes não deixavam dúvidas de
que era um membro de um velho culto de lunáticos adoradores de espíritos.
O general Maratè, que comandava as forças dos
Reinos na vasta planície verde que preenchia a vista até ao horizonte,
reconheceu-o, e chamou os seus oficiais a si. Mas o vulto negro pareceu não se
importar com a batalha, cavalgando indiferentemente em linha reta, em direção
ao exército inimigo.
Uma miragem no campo de batalha, pensara Maratè,
mas os seus olhos arregalaram‑se quando percebeu que o inimigo também o via, e
avançava agora na sua direção com toda a fúria e adrenalina da batalha nos seus
palpitantes corações.
“Tomuy! Aquele parece…”
“Yipion!” respondeu Tomuy, o braço direito do
general.
“Cruzes credo! O que está ele a fazer? Vai-se matar
se não o protegermos,” alertou o general.
Maratè ordenou ao seu batalhão que o seguisse, numa
manobra arriscada de flanqueamento. As tropas aliadas, posicionadas a Norte,
teriam que contornar toda a primeira linha de ataque inimiga para alcançar o
príncipe que se aproximava pelo Oeste. Logo se formou uma longa fileira de
soldados aliados, que tentavam proteger os flanqueadores. O movimento das
tropas provocou uma natural reação dos inimigos, e mais uma vez os dois
exércitos estavam frente-a-frente. Mas a muito custo, Maratè conseguiu alcançar
o príncipe, que nesse momento entrava pelas fileiras inimigas adentro, de
alguma forma conseguindo evadir os golpes que as criaturas intentavam.
“Estes porcos nojentos…escumalha…destrui-los,
destrui-los a todos…” sibilou a voz, num sussurro tão baixo que, com o som da
batalha, Yipion quase não conseguiu ouvir. “Ah…coitados, agora querem
reaver-nos, marionetas, bonecos de cera, animais inúteis…”
Yipion cavalgou abrindo caminho pelos seres negros,
mais negros que o preto, uma ausência total e absoluta de cor. Atravessou por
completo o exército, e continuou, em direção à Montanha Preta, sem olhar para
trás. O general e os seus oficiais, embora estupefactos, aproveitaram a
distração para completar o flanqueamento do inimigo e iniciar a vitória de mais
uma batalha.
Noite. À frente de uma fogueira sentava-se Yipion,
pensativo. As marcas no seu corpo mostravam todas as mazelas por que tivera
passado, e a sua expressão denotava cansaço. Cansaço para com a vida, cansaço
para com toda esta missão. Abrigado numa pequena tenda, no sopé da Montanha Preta,
olhava frequentemente para cima, ponderando, lembrando. O que pensava, ninguém
sabe. Apenas a profunda voz, que ora e vez se manifestava, dava algum sentido à
sua vida. A voz tinha-lhe ensinado tudo. O caminho dos monges adoradores, do
Fluxo, a arte da espada e do YoPunJi. Mas a voz era louca, demente quase, e
Yipion sabia que não se podia deixar contagiar, pois essa loucura lhe dava medo.
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