— A chuva assolava a cidade de
Mascath, e eu estava gelado até aos ossos. Nestes tempos de guerra, a escuridão
é temível, e quando cheguei aos portões já ela dominava a noite. Disseram-me
que não era permitida entrada, porque o inimigo era matreiro. Disse-lhe que era
soldado, ofereci-me para lutar nas muralhas em troca de comida e abrigo. A
pergunta? O meu apetite superaria as minhas mãos. Ah, e como era grande o meu apetite.
Imóvel, vi alguns arqueiros com flechas apontadas a mim. Depois de caminhar
durante dois dias seguidos com a parca comida que tinha conseguido esgueirar
pelo acampamento dos mercenários, não estava em condições de lutar ou discutir.
Por isso montei a minha tenda, bem à frente da muralha e dormi por um dia.
Não me
deixaram entrar. Ao segundo dia avisaram-me, disseram-me para fugir da cidade
se queria sobreviver. A guerra é implacável, e sem reforços dos reinos, muitas
povoações são perdidas, por não conseguirem igualar a força imperecível dos
nossos inimigos. Tinha dois pedaços de pão, uma fatia de carne fumada e dois
dedos de água. Mas mesmo assim fiquei ali, no calor ardente do dia. Apesar de
ter recuperado da fadiga e feridas, a fome estava a tomar conta de mim. Com o
cair da noite, caiu a chuva. Pus o meu cantil na lama, com esperança de o
encher de chuva. Logo depois, vi uma garrafa de couro voar na minha direção.
Olhei para cima e o Capitão da muralha disse-me que as vis criaturas envenenam
o ar, a água e envenenam o solo. O que eles me atiraram não era água, estranho,
eu via o Fluxo através dela.
O dia
seguinte veio com um tempo anormalmente bom. A briza soprava os meus cabelos de
um lado para o outro delicadamente, como que uma carícia, dando-me tempo e paz
de espírito para ponderar, trazer velhas memórias de volta...o meu propósito. A
noite veio cedo nesse dia, e a muralha avisou-me novamente que o inimigo andava
por perto. A fome e a dor venceram-me, e adormeci pelo que pareceu um mero minuto.
Com um salto acordei, destruí a minha pobre tenda. À minha volta o barulho era
de metal e gritos. Tomei consciência da cena, e apercebi-me que estava a ser
rodeado por um grande grupo da hoste inimiga. Figuras disformes e ameaçadoras.
Manchas de fumo negro pairavam no ar, sombras distantes marcavam a paisagem com
a destruição do inimigo. O cheiro horrendo a sangue. Como eu quis ter fugido...
Mas não, esta tinha sido a minha missão desde sempre, e o meu valor tinha de
ser provado.
Com
forças resgatadas do meu mais íntimo recanto, tentei lembrar os meus
ensinamentos. Talvez fosse a água. Tinha energia, e as minhas dores aliviadas.
Os movimentos voaram com destreza e suavidade, e as palavras sagradas,
oh...vieram em clarões rompantes como bombas na noite.
Senti-me
glorioso, realizado.
Feliz.
—
Diz-me então, herói, quem culpas tu? Os teus mestres, os homens na muralha, ou
tu próprio?
—
Culpa? À morte não se atribuem culpas, pois ser acolhido nos Céus é a maior das
honras, minha Deusa.
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