Saturday, 26 October 2013

Yipion - parte 1



“Hamut. Que esse nome iria ser famoso, eu sempre soube. Mas nunca imaginei que pelos piores motivos,” dizia a voz.
E disse muitas coisas, durante tempos e tempos, incessantemente, e conquistou a mente do pequeno Yipion, o menino da Corte, que nem falar sabia.
Como que uma compensação divina pela aparente estupidez do rapaz, possuía uma ávida inteligência, perspicácia e parecia sempre saber o que fazer, mesmo só tendo ainda três anos de idade.
E ele cresceu assim, mudo. E os pais educaram-no, como qualquer rei faz a um filho, porém sempre com algum receio do que o futuro lhe reservaria.
Yipion tinha dezassete anos, e ingressou no exército. Receoso pelo pequeno e aparentemente indefeso rapaz, o pai não o deixou, tentando prendê-lo em casa. Yipion esgueirou-se do palácio, e nunca mais foi visto.
Anos passaram-se e a guerra contra o inimigo continuava em plena força, Yipion nunca tendo sido visto. Até que um dia, durante uma batalha acesa entre os Reinos das Montanhas e o inimigo, um cavaleiro montado num corcel preto, vestido com uma longa túnica preta com finos detalhes a vermelho, adentrou o campo de batalha a toda a velocidade. A cabeça rapada, e a pele repleta de marcas e cicatrizes não deixavam dúvidas de que era um membro de um velho culto de lunáticos adoradores de espíritos.
O general Maratè, que comandava as forças dos Reinos na vasta planície verde que preenchia a vista até ao horizonte, reconheceu-o, e chamou os seus oficiais a si. Mas o vulto negro pareceu não se importar com a batalha, cavalgando indiferentemente em linha reta, em direção ao exército inimigo.
Uma miragem no campo de batalha, pensara Maratè, mas os seus olhos arregalaram‑se quando percebeu que o inimigo também o via, e avançava agora na sua direção com toda a fúria e adrenalina da batalha nos seus palpitantes corações.
“Tomuy! Aquele parece…”
“Yipion!” respondeu Tomuy, o braço direito do general.
“Cruzes credo! O que está ele a fazer? Vai-se matar se não o protegermos,” alertou o general.
Maratè ordenou ao seu batalhão que o seguisse, numa manobra arriscada de flanqueamento. As tropas aliadas, posicionadas a Norte, teriam que contornar toda a primeira linha de ataque inimiga para alcançar o príncipe que se aproximava pelo Oeste. Logo se formou uma longa fileira de soldados aliados, que tentavam proteger os flanqueadores. O movimento das tropas provocou uma natural reação dos inimigos, e mais uma vez os dois exércitos estavam frente-a-frente. Mas a muito custo, Maratè conseguiu alcançar o príncipe, que nesse momento entrava pelas fileiras inimigas adentro, de alguma forma conseguindo evadir os golpes que as criaturas intentavam.
“Estes porcos nojentos…escumalha…destrui-los, destrui-los a todos…” sibilou a voz, num sussurro tão baixo que, com o som da batalha, Yipion quase não conseguiu ouvir. “Ah…coitados, agora querem reaver-nos, marionetas, bonecos de cera, animais inúteis…”
Yipion cavalgou abrindo caminho pelos seres negros, mais negros que o preto, uma ausência total e absoluta de cor. Atravessou por completo o exército, e continuou, em direção à Montanha Preta, sem olhar para trás. O general e os seus oficiais, embora estupefactos, aproveitaram a distração para completar o flanqueamento do inimigo e iniciar a vitória de mais uma batalha.
Noite. À frente de uma fogueira sentava-se Yipion, pensativo. As marcas no seu corpo mostravam todas as mazelas por que tivera passado, e a sua expressão denotava cansaço. Cansaço para com a vida, cansaço para com toda esta missão. Abrigado numa pequena tenda, no sopé da Montanha Preta, olhava frequentemente para cima, ponderando, lembrando. O que pensava, ninguém sabe. Apenas a profunda voz, que ora e vez se manifestava, dava algum sentido à sua vida. A voz tinha-lhe ensinado tudo. O caminho dos monges adoradores, do Fluxo, a arte da espada e do YoPunJi. Mas a voz era louca, demente quase, e Yipion sabia que não se podia deixar contagiar, pois essa loucura lhe dava medo.

Tuesday, 18 December 2012

3º Ano da Guerra



      3º Ano da guerra
                Tecis – o último bastião do Sul do reino de Orago – erguia-se majestosamente com as suas altas torres de granito a olhar as chamas vermelhas ao longe.
     — FOGO EM AMALID! – gritou o guarda da guarita.
                O sinal luminoso foi lançado, e as tropas aquarteladas no grande edifício de pedra no meio do forte saíram a correr para os cavalos. Não eram muitos, mas entre eles estavam os quatro mais poderosos guerreiros dos Reinos das Montanhas. O destacamento cavalgou por entre a noite fria, pelas ervas baixas e pela mata nua, com os generais à frente em cavalos pretos como mandava a tradição. Os soldados atrás vestiam armaduras completas de aço. Eram todos disciplinados, treinados pessoalmente pela ceita militar chamada de Warlords. Os quatro generais vestiam elegantes armaduras de aço feitas à medida, cobertas com um característico manto preto encapuzado, com uma águia poligonal bordada em cor de sangue no peito.
                Por entre a bruma viam as colunas de fumo ao longe, iluminadas pela luz ardente que inundava a pequena aldeia de Amalid, na fronteira do reino de Orago, o reino mais a Este dos dois Reinos das Montanhas, aliados na guerra contra o que quer que fosse que vinha da Montanha Preta. Hamut e Hera, do reino de Inur’l, ainda não se tinham habituado a estar em território que antes fora inimigo, combater ao lado destes, e comer nos seus salões. Mas a guerra, como o amor, não olha a vontades. Os cerca de cem cavaleiros entraram numa zona de vegetação cerrada, onde, na noite, uma estrada de terra negra era pouco visível. As estrelas esconderam-se, e os fogos de luz laranja e amarela, antes tão aterradoramente brilhantes, perderam-se por entre troncos, e ramos, e folhas.
                Uma explosão de cores atirou a primeira metade da coluna de soldados ao chão, e a segunda caiu ou perdeu-se por entre a mata ao encontrar tamanha confusão. Gritos e berros soavam por entre a escuridão. Tochas caíram nas ervas secas. Rapidamente chamas consumiram a folhagem rasteira, iluminando a cena. Os inimigos estavam já em marcha para Tecis, e deram de caras com a guarnição aliada. Figuras negras deformadas, de orelhas pontiagudas, presas enormes, alguns com asas, outros com compridas caudas, espinhos, e feições infernais que tais. Em apenas um segundo a batalha estava lançada. Hamut empunhou a sua lança com as duas mãos e empalou três inimigos de uma vez. Hera rodopiou no ar, atirando pequenas lâminas que cravaram os peitos de quatro. Arati e Jhoser, guerreiros que ganhavam batalhas sozinhos, lutavam como que numa dança mortal, cortavam tudo à sua volta, ziguezagueando por entre soldados aliados e inimigos com gentileza e astúcia.
                Em tudo a batalha parecia estar ganha, mas mais e mais reforços inimigos chegavam de Amalid.
                — Retirada! – gritou Hamut.
                Sem dar as costas à batalha, soldados aliados voltaram para trás. Muitos sacaram dos seus arcos para cobrir a retirada. Arati sacou da sua besta, e Hera da sua pedra azul, com um estranho símbolo arredondado. No reboliço da retirada, vários soldados foram mortos. Viam já o fim da mata, correram para campo aberto. Correram o mais que puderam.
     Foi aí que, sem aviso nem pretexto, o viram. O gigante de que os fronteiriços falavam. O tal, que destruía os campos, que derrubava portas, que levantava torres, que com um sopro esmagava soldados e que com um olhar os desalmava. Esse, que estava na sua frente, um colosso mais que um gigante. Uma criatura de tamanhos desproporcionais, de grunhidos infernais, e de olhar petrificante. Ao ver tamanha besta, Hera fechou os olhos e conjurou a sua mais profunda energia. Todos os soldados ficaram apaziguados, e prepararam-se para o embate. O monstro irrompeu para a frente, enquanto levava uma saraivada de flechas. Mas ele não se importou. Pisou um punhado de soldados com o primeiro passo, e mais outro com o segundo. Aproveitando a abertura, os outros fugiram, mas muitos foram também apanhados pelo exército inimigo nas costas.
    — Faz alguma coisa! – disse Hamut a Hera
    Enquanto corriam – agora de costas para a ação – apavorados de volta à cidade, ouviam-se gritos lá atrás. Hera tentava de tudo, para que não parassem de correr. Caiu redondo no chão, deixando cair a pedra azul. Jhoser apanhou-o e levou‑o às costas até ao forte.
    A pedra lá ficou, na lama branca, pisada e pisada e pisada. Por besta, por homem, por monstro, por espírito, por fada. Escondida, até que alguém a visse, pegasse, e estudasse.
   Até que alguém a usasse, e com ela dominasse os povos das Montanhas, até que um herói aparecesse, trazendo promessas de glória eterna, de vitórias majestosas e de paz. Que desse alento aos Reinos das Montanhas, e eventualmente conquistasse a Montanha Preta de volta, enxotando os traidores para lá da Floresta de Ant.

Tuesday, 20 November 2012

Mascath: O Conto



— A chuva assolava a cidade de Mascath, e eu estava gelado até aos ossos. Nestes tempos de guerra, a escuridão é temível, e quando cheguei aos portões já ela dominava a noite. Disseram-me que não era permitida entrada, porque o inimigo era matreiro. Disse-lhe que era soldado, ofereci-me para lutar nas muralhas em troca de comida e abrigo. A pergunta? O meu apetite superaria as minhas mãos. Ah, e como era grande o meu apetite. Imóvel, vi alguns arqueiros com flechas apontadas a mim. Depois de caminhar durante dois dias seguidos com a parca comida que tinha conseguido esgueirar pelo acampamento dos mercenários, não estava em condições de lutar ou discutir. Por isso montei a minha tenda, bem à frente da muralha e dormi por um dia.
                Não me deixaram entrar. Ao segundo dia avisaram-me, disseram-me para fugir da cidade se queria sobreviver. A guerra é implacável, e sem reforços dos reinos, muitas povoações são perdidas, por não conseguirem igualar a força imperecível dos nossos inimigos. Tinha dois pedaços de pão, uma fatia de carne fumada e dois dedos de água. Mas mesmo assim fiquei ali, no calor ardente do dia. Apesar de ter recuperado da fadiga e feridas, a fome estava a tomar conta de mim. Com o cair da noite, caiu a chuva. Pus o meu cantil na lama, com esperança de o encher de chuva. Logo depois, vi uma garrafa de couro voar na minha direção. Olhei para cima e o Capitão da muralha disse-me que as vis criaturas envenenam o ar, a água e envenenam o solo. O que eles me atiraram não era água, estranho, eu via o Fluxo através dela.
                O dia seguinte veio com um tempo anormalmente bom. A briza soprava os meus cabelos de um lado para o outro delicadamente, como que uma carícia, dando-me tempo e paz de espírito para ponderar, trazer velhas memórias de volta...o meu propósito. A noite veio cedo nesse dia, e a muralha avisou-me novamente que o inimigo andava por perto. A fome e a dor venceram-me, e adormeci pelo que pareceu um mero minuto. Com um salto acordei, destruí a minha pobre tenda. À minha volta o barulho era de metal e gritos. Tomei consciência da cena, e apercebi-me que estava a ser rodeado por um grande grupo da hoste inimiga. Figuras disformes e ameaçadoras. Manchas de fumo negro pairavam no ar, sombras distantes marcavam a paisagem com a destruição do inimigo. O cheiro horrendo a sangue. Como eu quis ter fugido... Mas não, esta tinha sido a minha missão desde sempre, e o meu valor tinha de ser provado.
                Com forças resgatadas do meu mais íntimo recanto, tentei lembrar os meus ensinamentos. Talvez fosse a água. Tinha energia, e as minhas dores aliviadas. Os movimentos voaram com destreza e suavidade, e as palavras sagradas, oh...vieram em clarões rompantes como bombas na noite.
                Senti-me glorioso, realizado.
Feliz.
                — Diz-me então, herói, quem culpas tu? Os teus mestres, os homens na muralha, ou tu próprio?
                — Culpa? À morte não se atribuem culpas, pois ser acolhido nos Céus é a maior das honras, minha Deusa.

Thursday, 30 August 2012

The Tale of Mascath




“The rain poured upon the city of Mascath, and I was freezing to the bone. In these times of war, people fear the darkness, and the night was long when I reached the gates. They told me no one was to enter, as the enemy was not to be trusted. Told them I was a soldier, offered to fight on the walls in exchange for shelter and food. The answer? My hands wouldn’t match my appetite. And oh, it was big, my appetite. I spied some archers setting their aims upon me as I stood immobile. Walking for 2 days straight with the scarce food and water I managed to smuggle through the mercenary camp, I was in no condition to fight or argue. So I pitched my tent, right outside the wall and slept for a day.
                They still didn’t let me in. By the second day they warned me, told me to get away from the village if I were to survive the attack. The war is ruthless, and without reinforcements from the kingdoms, many settlements are lost, for they cannot cope with the undying will of our enemies. I had 2 slices of bread, a piece of smoked meat and a swig’s worth of water. But I still lay there, under the blazing heat of the day. Although recovered from most fatigue and wounds, hunger was setting in. As the night came, so did the rain. I set my canteen in the mud, in hopes to get it filled with rain. Soon after, a hide bottle came flying down to land on my doorstep. I looked up and the Captain atop the wall told me the vile beasts poison he air, poison the water, poison the land. They trusted only their own water. I still don’t understand, but the fluid he threw me was not water. Did they not notice the Flow around it? The next day came with an unusually fair weather. The breeze swept my hair back and forth with a caress’ gentleness, giving me the time and spirit to ponder, bring back old memories, my purpose. The night came early that day, and the wall warned me again that the enemy was near. Hunger and ache overcame me, and I fell asleep for what seemed a measly minute. I jumped, crashing my poor tent, and the noise all around was that of metal and shouts. As I became aware of the scene, I realized I was being surrounded by a large group of the enemy’s host. With newly-found strength, I tried to remember my teachings. Must have been the water. I had energy, and my aches were soothed. The movements flew so smooth, and the words, oh they came flashing into my mind like fireflies in the dark.
                I felt glorious, accomplished. Happy.”
                “So who is it to blame then, hero? Your masters, the men atop the wall, or yourself?”
                “Death is not to be blamed upon, for being welcomed into the Heavens is the greates of honours, my Goddess.”