Tuesday 20 November 2012

Mascath: O Conto



— A chuva assolava a cidade de Mascath, e eu estava gelado até aos ossos. Nestes tempos de guerra, a escuridão é temível, e quando cheguei aos portões já ela dominava a noite. Disseram-me que não era permitida entrada, porque o inimigo era matreiro. Disse-lhe que era soldado, ofereci-me para lutar nas muralhas em troca de comida e abrigo. A pergunta? O meu apetite superaria as minhas mãos. Ah, e como era grande o meu apetite. Imóvel, vi alguns arqueiros com flechas apontadas a mim. Depois de caminhar durante dois dias seguidos com a parca comida que tinha conseguido esgueirar pelo acampamento dos mercenários, não estava em condições de lutar ou discutir. Por isso montei a minha tenda, bem à frente da muralha e dormi por um dia.
                Não me deixaram entrar. Ao segundo dia avisaram-me, disseram-me para fugir da cidade se queria sobreviver. A guerra é implacável, e sem reforços dos reinos, muitas povoações são perdidas, por não conseguirem igualar a força imperecível dos nossos inimigos. Tinha dois pedaços de pão, uma fatia de carne fumada e dois dedos de água. Mas mesmo assim fiquei ali, no calor ardente do dia. Apesar de ter recuperado da fadiga e feridas, a fome estava a tomar conta de mim. Com o cair da noite, caiu a chuva. Pus o meu cantil na lama, com esperança de o encher de chuva. Logo depois, vi uma garrafa de couro voar na minha direção. Olhei para cima e o Capitão da muralha disse-me que as vis criaturas envenenam o ar, a água e envenenam o solo. O que eles me atiraram não era água, estranho, eu via o Fluxo através dela.
                O dia seguinte veio com um tempo anormalmente bom. A briza soprava os meus cabelos de um lado para o outro delicadamente, como que uma carícia, dando-me tempo e paz de espírito para ponderar, trazer velhas memórias de volta...o meu propósito. A noite veio cedo nesse dia, e a muralha avisou-me novamente que o inimigo andava por perto. A fome e a dor venceram-me, e adormeci pelo que pareceu um mero minuto. Com um salto acordei, destruí a minha pobre tenda. À minha volta o barulho era de metal e gritos. Tomei consciência da cena, e apercebi-me que estava a ser rodeado por um grande grupo da hoste inimiga. Figuras disformes e ameaçadoras. Manchas de fumo negro pairavam no ar, sombras distantes marcavam a paisagem com a destruição do inimigo. O cheiro horrendo a sangue. Como eu quis ter fugido... Mas não, esta tinha sido a minha missão desde sempre, e o meu valor tinha de ser provado.
                Com forças resgatadas do meu mais íntimo recanto, tentei lembrar os meus ensinamentos. Talvez fosse a água. Tinha energia, e as minhas dores aliviadas. Os movimentos voaram com destreza e suavidade, e as palavras sagradas, oh...vieram em clarões rompantes como bombas na noite.
                Senti-me glorioso, realizado.
Feliz.
                — Diz-me então, herói, quem culpas tu? Os teus mestres, os homens na muralha, ou tu próprio?
                — Culpa? À morte não se atribuem culpas, pois ser acolhido nos Céus é a maior das honras, minha Deusa.